As alternativas aos produtos lácteos enfrentam um mercado altamente exigente: têm de oferecer sabor, cremosidade, funcionalidade, bem como um bom perfil nutricional e ambiental — tudo isto a um preço acessível.
A chave para obter análogos lácteos de qualidade está no processo de fermentação. A fermentação pode ser utilizada não só para desenvolver o produto final, mas também para obter ou melhorar ingredientes que elevam a qualidade da formulação.
Neste artigo apresentamos casos práticos para desenvolver análogos lácteos através de diferentes processos fermentativos, bem como outras estratégias tecnológicas que vão desde matérias-primas vegetais locais à estruturação de gorduras e ao fracionamento a seco.
Processos de fermentação
A escolha do processo de fermentação adequado depende do resultado pretendido: produto final pronto a consumir, ingredientes intermédios que melhoram formulações ou ingredientes avançados com funções muito específicas.
Segue-se um resumo do que cada via tecnológica aporta e quando utilizá-la.
Produto final: processo de fermentação tradicional
Este processo aplica-se diretamente a matérias vegetais, como bebidas vegetais ou pastas de frutos secos, utilizando culturas iniciadoras típicas dos lácteos fermentados, como bactérias ácido-lácticas (Lactobacillus bulgaricus, Streptococcus thermophilus) e fungos como Penicillium camemberti e P. roqueforti.
- Resultados: Análogos de iogurte e queijo com acidez controlada, estrutura de gel estável, baixa sinérese e características sensoriais próximas dos lácteos tradicionais.
- O que resolve: Reduz os off-flavours da matéria-prima vegetal, gera um perfil aromático característico dos lácteos e melhora textura e viscosidade.
- Quando utilizar: Quando o objetivo é um produto final com boa aceitação sensorial, clean label e enquadramento regulatório imediato.
- Parâmetros-chave: Tipo de cultura iniciadora, capacidade fermentativa dos substratos vegetais, pH final, tempo/temperatura de fermentação, força do gel, sinérese e estabilidade ao longo da vida útil.
Ingredientes intermédios: fermentação de biomassa e funcionalização
O crescimento controlado de fungos e leveduras permite gerar biomassa proteica e modular propriedades tecnofuncionais essenciais, reduzindo simultaneamente os off-flavours característicos das proteínas vegetais.
A funcionalização atua como uma etapa estratégica que liga a matéria-prima vegetal a um comportamento tecnológico e sensorial mais próximo do das proteínas lácteas, como a caseína.
Este processo permite obter ingredientes intermédios com maior valor acrescentado, integráveis em bebidas, iogurtes ou queijos análogos, melhorando a estabilidade, a textura e o perfil organolético.
- Resultados: Micoproteína (aporte proteico e estrutural), Single cell oils (aporte lipídico e comportamento texturizante), Ingredientes vegetais funcionalizados com melhor desempenho tecnológico e sensorial
- O que resolve: Melhora a tecnofuncionalidade (emulsificação, gelificação, retenção de água), reduz off-flavours e aumenta o valor nutricional sem impacto no rótulo.
- Quando utilizar: Para gerar micoproteína ou quando a base vegetal necessita de melhoria sensorial, tecnológica e/ou nutricional; para estabilizar bebidas, iogurtes ou queijos análogos.
- Parâmetros-chave: Rendimento, composição, impacto reológico e compatibilidade com etapas posteriores do processo.
Ingredientes avançados: fermentação de precisão
Esta abordagem utiliza plataformas microbianas concebidas para produzir moléculas específicas.
- Resultados: Moléculas feitas à medida que replicam funções essenciais da matriz láctea (redes proteicas tipo caseína, lípidos específicos, enzimas/compostos aromáticos).
- O que resolve: Necessidades muito específicas de estrutura, fundência, sabor/maturação ou estabilidade que não podem ser alcançadas com matérias-primas vegetais convencionais.
- Quando utilizar: Em I&D a médio prazo quando se procuram funcionalidades de elevado desempenho. Nota regulamentar (UE): atualmente não comercializável; requer estratégia regulatória e alternativas de curto prazo (tradicional + biomassa).
Processo de fermentação com matérias-primas vegetais locais: Projeto FERVELACT
Atingir atributos como aroma, cremosidade e valor nutricional típicos dos lácteos, partindo de matérias vegetais, é um desafio significativo.
Para ultrapassar esta barreira, a AINIA utiliza processos de fermentação controlada com bases vegetais de chufa, amêndoa, tremoço e linhaça, juntamente com tecnologias avançadas:
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Metabolómica: identificação de metabolitos-chave gerados durante a fermentação
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Metagenómica: caracterização dos microrganismos produtores desses metabolitos
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Food Computing: orientação do processo fermentativo para o perfil sensorial pretendido
Resultados:
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Culturas iniciadoras ajustadas a cada matéria-prima vegetal
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Nova bebida vegetal (tremoço + chufa) com propriedades nutricionais comparáveis ao leite de vaca meio-gordo
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Análogos fermentados de iogurte e queijo com gel estável, baixa sinérese e perfil nutricional semelhante ao dos lácteos de referência
Potenciação de sabor através do processo de fermentação: Projeto FLAVOURFERM
Reduzir off-flavours vegetais e construir um bom perfil sensorial — em aroma e textura — é crítico para a aceitação dos análogos lácteos.
Para isso, estamos a otimizar diferentes processos de fermentação (tradicional, biomassa e precisão) e a validar resultados em ambiente industrial, com recurso a:
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Proteínas recombinantes (caseína animal-free) obtidas por fermentação de precisão
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Fermentação de biomassa fúngica para ingredientes com melhor perfil sensorial e nutricional
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Processos fermentativos tradicionais para aplicações análogas
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Modelização computacional para prever e direcionar a formação de compostos voláteis associados ao sabor lácteo e umami
Resultados alcançados:
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Melhoria significativa de sabor e textura, a testar com consumidores
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Ingredientes funcionais prontos para bebidas, queijos análogos e até análogos cárneos
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Rotas de formulação clean label compatíveis com escala industrial
Projeto desenvolvido pela AINIA com apoio da União Europeia.
Proteínas e ingredientes funcionais obtidos por classificação por ar: Projeto AIRPROT
Aumentar o teor proteico e a funcionalidade das proteínas alternativas de forma sustentável, sem penalizar o rótulo, exige novas linhas de processo.
No AIRPROT, a AINIA trabalhou com:
- Fracionamento a seco por classificação por ar A partir de algarroba, tremoço, insetos e subprodutos vegetais. Aplicaram-se tratamentos térmicos/enzimáticos para modular viscosidade e textura, replicando matrizes como leite, iogurte ou queijo e melhorando a digestibilidade.
- Estratégias de funcionalização: Térmicas, enzimáticas e fermentativas.
Resultados:
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Modulação das propriedades nutricionais, sensoriais e tecnológicas
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Concentrados proteicos e frações de amidos/fibras com melhor emulsificação e retenção de água
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Testes de aplicabilidade em smoothies e produtos de panificação
Projeto desenvolvido pela AINIA com apoio da Generalitat Valenciana e do IVACE.
Novas vias para estruturas lipídicas sustentáveis: Projeto BOILÀ
A transição para alternativas lácteas mais saudáveis e sustentáveis exige substituir óleo de palma e coco por estruturas lipídicas capazes de replicar a funcionalidade e o desempenho sensorial dos lácteos.
A AINIA investigou diversas abordagens:
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Extração avançada de oleossomas (grainha de uva, semente de abóbora)
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Oleogelação proteica para estruturar óleos vegetais líquidos
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Produção de Single Cell Oils por fermentação microbiana
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Desenvolvimento de uma linha celular de oliveira para novas rotas biossintéticas de lípidos
Resultados:
Frações ricas em oleossomas, novas gorduras estruturadas e emulsificadas com proteínas, avanços na produção de lípidos microbianos e uma linha celular de oliveira — um portfólio de gorduras sustentáveis com elevado potencial para análogos lácteos e produtos plant-based.
Projeto desenvolvido pela AINIA graças ao apoio do IVACE, da Generalitat Valenciana e da União Europeia.







